quinta-feira, 9 de maio de 2013

Não


Nunca estive tão próxima daquilo que procurei a vida toda. E, infelizmente, foi o momento mais distante de todos. 

Hesitei, pois seria anormal não fazê-lo. E o habitual sempre exerceu-me grande influência. Desci a rua 15 em palpitações, com a expectativa atravessando-me cada fibra do espírito, cada gânglio da alma. Uma queimação fina, fininha, ardendo lá no fundo. Cheguei em frente à porta e congelei. Girei sobre os calcanhares, decidida. Vou embora! A abertura rangeu sobre as dobradiças. Meus olhos saltariam por sobre as órbitas, tão arregalados, se fosse possível. O coração veio à língua, e senti seu gosto intenso.

- Clara?

Engoli em seco e devolvi o coração ao seu devido lugar. Mas ele ficou a socar-me o peito com a violência dos raptados. Virei-me, tremendo.

- Oi, Emanuel. Eu...

O silêncio desceu rápido e pesado. E encarou-me e riu. E gargalhou. E apontou-me o dedo e sofreu espasmos de tanto rir. Senti o rubor arder-me o rosto e o vermelho tomar-me toda a face. Tentei organizar alguma coisa, mas faltou-me competência. 

- Já sei, veio pegar os textos da aula de Sociologia de Comportamento, não é mesmo? Quer saber, não perdeu nada! O professor fez toda a matéria atingir os píncaros do tédio. 

Concordei, com a boca aberta e a expressão atabalhoada. Ele entrou, indo buscar... o que mesmo? Como não encontrava, gritou.

- Clara, entre, por favor, acho que vai demorar! Não encontro nada neste caos!

Entrei. A pequena sala estava ligeiramente desorganizada. Mas era aconchegante. Estranhamente. Um sofá, uma poltrona e uma estante repleta de livros. Nada mais. Esperei alguns minutos e fui em direção a estante. Os livros eram, quase todos, muito velhos.  Retirei um volume qualquer. As páginas amareladas denunciavam sua idade. Retornei-o ao lugar. Não havia televisão. Perscrutei melhor. O silêncio era uma espécie de fundação àquele ambiente. Notei, então, que tudo era insolitamente velho, antigo. Subitamente, um grande estrondo vindo do final do corredor logo à minha esquerda. E, novamente, o silêncio. Sepulcral. 

- Emanuel? Tudo bem aí?

Nada. Perguntei novamente, mas, outra vez, apenas o silêncio respondeu. Como demorava, decidi ver o que estava acontecendo. Avancei no corredor.

- Emanuel? 

Silêncio. 

- Emanuel?

Cheguei à porta do que seria um quarto. Entreaberta, a empurrei, com cuidado. O rangido fino assustou-me, e minha respiração acelerou. Adentrei o cômodo. Uma cama desarrumada. Uma escrivaninha com vários livros empilhados desordenadamente, e alguns papéis ao lado dos tomos. Muitos estavam amassados, jogados ao chão. Aproximei-me. Haviam sido escritos. Uma caligrafia disforme, corrida, como se houvesse urgência. Uma brisa forte o suficiente para espalha-los barafustou pela janela. Uma folha viajou até a cama. Corri a juntá-la. Tudo estava borrado, ilegível. Menos a última linha. Aquela que me fez a alma despencar em uma escura agonia. A mesma da qual é feita os pesadelos. 

Espero estar fazendo a coisa certa. Que Deus me perdoe. E o Diabo me receba. 

As moscas voejavam excitadas e seu balé furioso atingiu o ápice assim que o descobri.  Sua pele estava esticada sob o inchaço da putrefação. O fedor, como se houvesse surgido de repente, invadiu-me o nariz e não pude conter o vômito. Fugi em desespero e, antes de alcançar a porta, o mesmo retumbar de minutos atrás deu-se no quarto. Enregelei-me com a mão premendo a maçaneta. Um silêncio fúnebre abateu-se, até ouvi-lo:

- Clara? Já vai?

Não atrevi-me olhar para trás. Escancarei a porta e corri como se as pernas não fossem minhas.

Até hoje penso o queria seria das minhas faculdades se houvesse ousado responder.   


  

Um comentário:

Paulo disse...

Puxa, muito bom!
Nota 10, cara!