segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Coulrofobia



A visão era assaz angustiante. Não entendia o, ou os, motivos. Sentia recrescida necessidade de fugir. De gritar o terror que lhe assaltava violentamente. Mas não eram alternativas. Era-lhe possível apenas a paralisia do pânico, acompanhada das náuseas, do ar que faltava aos pulmões, e da excessiva sudorese.

Lembrava-se, por vezes, que a explicação científica não lhe convencia. Experiências traumáticas com um individuo, ou uma representação, singular. Mas não recordava-se de tal circunstância. Amnésia seletiva? Era apenas outro argumento racional. Mas sabia, sentia, que algo faltava.

Schlomo tratava-se há muito. Sua fobia era classificada como Simples, onde o medo era circunscrito a objetos ou situações concretas. Um transtorno de ansiedade que se manifestava em situações particulares. A psicoterapia trabalhava os três aspectos do tratamento. Comportamental, cognitivo e psicodinâmico. Mas, conquanto os esforços fossem disciplinados, pouco avanço conseguia-se. Seu caso, de certa forma, intrigava os especialistas.

Garantiram-lhe a ausência. Não haveria a presença intimidadora que lhe fornecia pavor arrítmico. Schlomo era o padrinho. Esta consideração, assim, era-lhe o mínimo de respeito devido. Os pais, amigos de longa data, forçosamente, neste caso, estavam a parte do inconveniente social que acompanhava o amigo. O garoto, mesmo, completaria dez verões. Uma figura daquelas não seria tão apreciada, então, pelos convidados. Enfim, tudo correria sem os constrangimentos experimentados inúmeras vezes por Schlomo nestas ocasiões. Em tempo, era uma das partes do tratamento. Exposição controlada e progressiva ao objeto fóbico. Mas o sucesso era eclipsado pelas varias vezes em que deixara, célere, os locais onde o, ou os, via.

E todos os momentos cursaram agradáveis. Todas as etapas combinadas implicitamente, todos os acordos tácitos destas festividades, foram encenados com espontaneidade e alegria. Schlomo sentia-se leve. Natural. Comum e normal.

A noite avançava, respeitando as leis naturais que lhe regiam. Pensou fazer parte do sonho. Mas a repetição insistente do som agudo fora, aos poucos, retirando-lhe do devaneio que lhe confundia o chamado. A campainha tocava, soava, de tão resoluta, irritava. Mas, por que diabos a esta hora? Levantou-se indignado. Mesmo ciente de que, costumeiramente, tal circunstância era fundamentada em alguma situação nada agradável. Alguma coisa ruim acontecera? Atravessou, trôpego, o longo corredor que acessava a escada a ligar o segundo andar ao primeiro piso. No pequeno vestíbulo, tomado pela umbra natural a uma noite sem luar, demorou a achar o interruptor. Gritou, ante a insistência frenética do acessório sonoro: um momento, por favor! Quando a luz encheu o cômodo, seus olhos se fecharam imediatamente. Quando já acostumados a claridade, percebeu o embrulho no móvel que ladeava a parede sul. O papel de presente reluzia, fulgurante, em cima da bela mesinha estilo Luiz XV.

- Puta que o pariu!! Schlomo nem titubeou. Soltou o calão como que por instinto. A campainha cessou em seguida. Um silencio, daqueles que ensejam agouros ignominiosos, fez-se. Avançou, o balzaquiano, à maçaneta. Girou os trincos e correu a porta na direção necessária.
- Padrinho, esqueceu meu presente? Fiquei muito triste. Mas, meu amigo consolou-me. E se dispôs a trazer-me aqui para buscá-lo.
- O quê? Como? Seu amigo? Rapazinho, você sabe que horas são? Aliás, seus pais sabem disso?
- Meu amigo falou-me que sim. Ele mesmo pediu a eles.
- Que história é esta de seu amigo? Não vejo ninguém, só você. Entre, vou vestir-me e leva-lo de volta. Era só o que me faltava.

Malgrado o insólito da situação, afinal uma criança de dez anos não costuma sair de casa, sem os pais, a esta hora, Schlomo não alongou o interrogatório. Ao abrir um pouco mais a porta, para que o garoto entrasse de uma vez, Schlomo sentiu a flexão involuntária de seus joelhos, provocada pela fraqueza súbita que lhe acometera as pernas. A aceleração desvairada da freqüência respiratória, acompanhada pelo descompasso celerado do ritmo cardíaco oportunizou a descarga de sensações desesperadoras, há muito familiares.   

Encontram-no, decompondo aceleradamente, deitado em sua cama. Preso em dedos de incomum rigor mortis, um embrulho aberto que permitia distinguir seu conteúdo. Uma caixa abrigava certo brinquedo. Um boneco que representava a personagem símbolo da alegria no folclore de muitas sociedades. Infarto fulminante. O medico legista registrou, após a investigação legal da necropsia.

- Papai! Mamãe! Por que o padrinho não me presenteou? Um sorriso amarelo e tímido, carregado de incompreensão, foi a única resposta possível.