sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Trófico


Havia sempre uma falta perspicaz. Alguma coisa deliberada. Um dolo quase sutil. Mas, nada disso desviava o curso ferino da necessidade. Repoltreavam-se como nubentes provincianas desesperadas a quem o tempo já desistiu de dar-lhes chance alguma. Escorriam as catadupas por suas sensações, com pezinhos nervosos termendo em cada centímetro, as vezes imiscuindo-se em buracos e buraquinhos, uns mais sorumbáticos, outros mais eróticos. Não raro mordiscavam, provocando arrepios tépidos, ou sofrimento atroz. Certos dias, os dois. Então, observavam, me parecia, sinceramente: 

- Você não é especial. Não, não, não. É, somente, carne. Das boas, admitimos. 

Sozinha, as coisas pioravam. Não existia outra maneira. Acompanhada, dividia, pelo menos, a angustia. Mordidinhas saltavam para a companhia, que se coçava, primeiro, e depois exaltava-se. "Mas, o quê?!" Fugia, correndo, apavorada, dando-se palmadas, espalhando todos que sofressem os pespegues das palmas assustadiças. E eles alvoroçavam em corridinhas miúdas, pra lá e pra cá, como espasmos crônicos e auto-suficientes. Para depois voltarem-me, mesmo que minha careta infeliz pedisse mais trégua. "Um pouco mais, só um pouco mais, por favor." Lamentações nunca os distraíram. Apiedar-lhes? Uma risada gorda era a resposta. 

Quando a resignação foi, enfim, a mais importante atitude, dei-me por satisfeita. Isso aliviou o fardo. Bastava-me, quem diria, admitir que sua determinação não encontrava coisa que fosse mais férrea. Um atributo invejável, hoje sei. Passo horas sentada em frente ao nada, vislumbrando quantas picadas, quantas chafurdadas, quantos dentinhos, bem pequenininhos, miudinhos mesmos, conseguirei contar. Já se foram centenas de milhares. Tenho uma biblioteca de cadernos cheios de números. Será que o infinito destes estará na ininterrupta vontade deles também?

A porta recebe umas pancadas. Assanham-se, os danadinhos. Cada toc, toc os atinge com uma sofreguidão inspiradora. Me pergunto: eu não era só carne? Ali, atrás da porta também é, ora bolas.    



segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Paredes Vivas

Minha amiga Rosa Mattos lançará, fins de setembro, seu primeiro romance, com o sobrenatural dando o tom da história. Quem conhece sua prosa sabe da qualidade que teremos neste texto. Recomendadíssimo!!


No link, você terá mais informações sobre a obra

Paredes Vivas

Parabéns guria!!!

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Ferida



As coisas estavam ruins. Mas tudo pode piorar. Deve ser uma regra universal, alguma lei da natureza.

Começou com o roçar de seus lábios em minha nuca. Como se uma lagarta, com as patinhas em chamas, sapateasse em minha pele. Depois veio o toque em meus lábios e a língua enfiada em minha boca. A sua estava cheia daquela umidade que constrói o desejo com tanto afinco, que toda e qualquer reticência do caráter diante da dúvida se desmancha como açúcar em água fervente. Havia tanto calor, tantos espasmos entre virilhas que meu espírito se rendeu à carne como as faculdades humanas se desfazem diante da beleza inflexível. Soltei-me em cada sulco dos lábios, em cada pedaço de sua boca, em cada drapejo de sua língua, intumescida para vibrar a devassidão na freqüência exata.

Então, como se este advérbio estivesse atrelado a todos os melindres, ela furou-me as expectativas em um Himalaia de caquinhos recolhidos da minha estupidez luxuriosa. Fui arremessado de encontro às vaidades mais negras e turbulentas, com tudo sendo rasgado, cortado e triturado. Por tudo quero ilustrar toda a esperança em ter encontrado a perfeição que nós, machos, buscamos a vida toda em uma fêmea. A armadilha insidiosa do querer fechou-se como o breu numa súbita queda de energia no meio da madrugada. Um estampido. Um momento seco e intenso. Afastou-se, sentando logo à frente, com a indiferença das gurias onde a perfeição das curvas a tudo permite.

Lambendo o fio com a avidez das putas mais experientes, ela olhava-me com um afinco que só notamos na essência daquela matéria nebulosa da qual os pesadelos são feitos. A solitária gota, gorda e espessa, escorria lentamente pela língua fendida no deslizar do fio, brilhando à luz ígnea da lâmpada que balançava cadenciada, em um ritmo desdenhoso. Seu corpo, nu, tosquiado à perfeição, com os músculos rijos, firmes e provocantes, provocava a Razão, rindo do confuso embate entre o terror e o tesão. Levantou-se da cadeira rota, logo a frente, e aproximou-se. O sorriso em seus lábios, manchados em vermelho, não combinava com aquele em seus olhos, onde uma espécie de maldade brincava com a ingenuidade das santas mais imaculadas. Atado com couro cru, encharcado pela água lodosa do balde ao lado, vi a beleza translúcida, cravada no concreto das suas formas perfeitas, chegar-me a ponto de empurrar o ventre contra meu nariz. Inspirei o mais profundo que pude e o cheiro do seu sexo invadiu toda trama de receptores que minha fisiologia permitiu. Entre as pernas, endureci. Ela riu. Um riso que parecia o som de jornal sendo amassado.   

A lamina desceu com tanta fúria, socada com tanto vigor, que as estocadas entravam e saiam com a cerimônia de um cachorro no cio. Quando seus músculos fatigaram, afastou-se e desabou sobre a cadeira. A dor latejava-me todos os nervos e gânglios. A vida ia rápido, sem tempo de, ao menos, olhar pra trás. Um instante antes de cair nas trevas do esquecimento, a vi meter as mãos entre as pernas e lubrificar o sexo com o sangue em profusão que lhe manchava cada nesga de pele. Os dedos pareciam trabalhar habilidosamente enquanto seu lábio inferior era mordiscado por dentes perfeitos.

As coisas estavam ruins. Mas tudo pode piorar.  


  

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Impudicícia



    As cercanias estavam parcamente iluminadas pelos postes decrépitos que margeavam a vicinal. Andei, transido por um horror inexplicável, que consumia cada célula viva, e morta, a constituir-me matéria e espirito, até adentrar a densidade sorumbática da vegetação. Inda hoje não consigo definir exatamente o que me impulsionou àquele lugar. Apenas a natureza dos boatos? Ou a inefável descrição dos abençoados infelizes que tiveram com ela? A curiosidade, neste caso, não importa-se em dar explicações, apenas nos insta, ainda que o ignorado nos custe alguma faculdade.

    Cheguei a um ermo. Desolado e inóspito. Soturno como um pesadelo do qual não podemos fugir, por mais que forcejemos. A vetustez do endereço estava inscrita não apenas no limo e nas ervas daninhas que vicejavam em cada recanto. Exalava através da atmosfera lodosa.

   Sentei-me a beira de um tronco lutulento, com musgos pululando, verdoengos. Havia caminhado por longas horas e meus pés cansados reclamavam pausa. O fôlego arquejava, às custas da parca resistência física que há muito perdera. Malgrado minhas caminhadas matutinas, o tabaco bem fez seu trabalho. 

    Recuperava-me, quando ouvi.

   Um inicio rugoso, um barulho taciturno e ímpio. Havia a certeza. Meu peito inflou-se de expectativa e daquele sentimento aflitivo que antecede o improvável, malgrado existir o desejo. Às minhas costas, as folhas podres avisaram. Os passos trouxerem o perfume da decadência e seu hálito brumoso roçou-me a nuca, eriçando pelos e alma. Os lábios tocaram-me o pescoço e senti o intumescido de sua constituição. Lábios gordos e molhados. Sói as libertinas os têm.

― Esqueça ― sussurrou-me, com o fragor dos inocentes corrompidos, ao ouvido.

    Até hoje dizem que ela, caso seja, você, indigno e néscio o suficiente a respeito dos vícios mais comuns e completamente indiferente às virtudes convencionais, lhe surgirá como a um orgasmo.

Quantas vezes um já o afetou a ponto de sofrer antecipadamente o seu fim? 

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Não


Nunca estive tão próxima daquilo que procurei a vida toda. E, infelizmente, foi o momento mais distante de todos. 

Hesitei, pois seria anormal não fazê-lo. E o habitual sempre exerceu-me grande influência. Desci a rua 15 em palpitações, com a expectativa atravessando-me cada fibra do espírito, cada gânglio da alma. Uma queimação fina, fininha, ardendo lá no fundo. Cheguei em frente à porta e congelei. Girei sobre os calcanhares, decidida. Vou embora! A abertura rangeu sobre as dobradiças. Meus olhos saltariam por sobre as órbitas, tão arregalados, se fosse possível. O coração veio à língua, e senti seu gosto intenso.

- Clara?

Engoli em seco e devolvi o coração ao seu devido lugar. Mas ele ficou a socar-me o peito com a violência dos raptados. Virei-me, tremendo.

- Oi, Emanuel. Eu...

O silêncio desceu rápido e pesado. E encarou-me e riu. E gargalhou. E apontou-me o dedo e sofreu espasmos de tanto rir. Senti o rubor arder-me o rosto e o vermelho tomar-me toda a face. Tentei organizar alguma coisa, mas faltou-me competência. 

- Já sei, veio pegar os textos da aula de Sociologia de Comportamento, não é mesmo? Quer saber, não perdeu nada! O professor fez toda a matéria atingir os píncaros do tédio. 

Concordei, com a boca aberta e a expressão atabalhoada. Ele entrou, indo buscar... o que mesmo? Como não encontrava, gritou.

- Clara, entre, por favor, acho que vai demorar! Não encontro nada neste caos!

Entrei. A pequena sala estava ligeiramente desorganizada. Mas era aconchegante. Estranhamente. Um sofá, uma poltrona e uma estante repleta de livros. Nada mais. Esperei alguns minutos e fui em direção a estante. Os livros eram, quase todos, muito velhos.  Retirei um volume qualquer. As páginas amareladas denunciavam sua idade. Retornei-o ao lugar. Não havia televisão. Perscrutei melhor. O silêncio era uma espécie de fundação àquele ambiente. Notei, então, que tudo era insolitamente velho, antigo. Subitamente, um grande estrondo vindo do final do corredor logo à minha esquerda. E, novamente, o silêncio. Sepulcral. 

- Emanuel? Tudo bem aí?

Nada. Perguntei novamente, mas, outra vez, apenas o silêncio respondeu. Como demorava, decidi ver o que estava acontecendo. Avancei no corredor.

- Emanuel? 

Silêncio. 

- Emanuel?

Cheguei à porta do que seria um quarto. Entreaberta, a empurrei, com cuidado. O rangido fino assustou-me, e minha respiração acelerou. Adentrei o cômodo. Uma cama desarrumada. Uma escrivaninha com vários livros empilhados desordenadamente, e alguns papéis ao lado dos tomos. Muitos estavam amassados, jogados ao chão. Aproximei-me. Haviam sido escritos. Uma caligrafia disforme, corrida, como se houvesse urgência. Uma brisa forte o suficiente para espalha-los barafustou pela janela. Uma folha viajou até a cama. Corri a juntá-la. Tudo estava borrado, ilegível. Menos a última linha. Aquela que me fez a alma despencar em uma escura agonia. A mesma da qual é feita os pesadelos. 

Espero estar fazendo a coisa certa. Que Deus me perdoe. E o Diabo me receba. 

As moscas voejavam excitadas e seu balé furioso atingiu o ápice assim que o descobri.  Sua pele estava esticada sob o inchaço da putrefação. O fedor, como se houvesse surgido de repente, invadiu-me o nariz e não pude conter o vômito. Fugi em desespero e, antes de alcançar a porta, o mesmo retumbar de minutos atrás deu-se no quarto. Enregelei-me com a mão premendo a maçaneta. Um silêncio fúnebre abateu-se, até ouvi-lo:

- Clara? Já vai?

Não atrevi-me olhar para trás. Escancarei a porta e corri como se as pernas não fossem minhas.

Até hoje penso o queria seria das minhas faculdades se houvesse ousado responder.